29.6.15

Foi-me dado pelo tio Manim,



tio da Isabel, o vime que eu tanto queria, um tronco aí de uns 40 cm. O vime tem os troncos lançados ao alto, não faz parte dos chorões.
Enterre dois terços do tronco, disse ele quando parti, faça como lhe digo, repetiu ao ver a minha cara de espanto. Ia ficar com uma árvore com 10 a 15 cm de altura.
Foi, por mero acaso, plantada no ano dois mil juntamente com o nascimento do euro. Podei, entrancei três e quatro dos ramos mais fortes, que ao engrossarem transformaram-se num único. Repeti o entrançado durante uns três anos. Cresceu forte e lindo o vime. Ainda o podei de escadote, mais tarde de escada, mas há muito que não é podado e os ramos estão altíssimos e todos os anos crescem mais. Árvore frondosa, belíssima.
A meio desta da Primavera houve um vento forte, nada que por aqui assustasse costumam ser bem mais fortes, e na manhã seguinte quando abri a janela pareceu-me que lhe faltava um dos ramos. À tardinha lembrei-me e fui ver o que teria acontecido. O meu vime partiu-se em três. Dois troncos grossos daqueles que tinha entrançado com tanto cuidado partiram e estavam, estão no chão, vivos, agarrados ao tronco central, mas no chão, o FMI e a UE. De pé, como se fosse um estandarte está o ramo mais pobre, mais fraco, menos bonito, é a minha Grécia.
A cada um o seu mito. O meu é rústico.


26.6.15

Sempre que posso


fujo para o meu jardim preferido. Afasto-me o mais que posso, sento-me num banco em sítio pouco visível e é aí que procuro a solidão bem-vinda e o silêncio. Habitualmente costumo ficar sozinha, mas hoje houve uma senhora que pedindo licença se sentou ao meu lado, não olhei nem lhe respondi, não queria conversas ou estragaria toda a minha fuga.
Ela começou a falar não sei se para mim ou se para ela, como se fosse uma lengalenga, ou uma oração que fazia a algum demónio de estimação
Naquele fim de tarde chegaste com ar todo pimpão com uma cadelinha ao colo. Olhavas-me desafiador e eu mais uma vez encolhi os ombros, que de tanto o fazer já se tornara num tique, num tique cada vez mais cheio de ódio.
Era o que me restava, raiva e ódio
Dizias de boca cheia «a minha cadela», nem me lembro se tinha nome, era a tua cadela. Mas a verdade é que só era tua para a teres ao colo e lhe fazeres festas e beijá-la, a ela porque a mim há anos nem um beijo davas, porco. Tu, tu, só servias para me gozares enquanto eu apanhava do chão de qualquer divisão da casa as suas necessidades, ou por obrigação tinha de lhe dar o comer
A tua cadela e o ódio a aumentar
A senhora sabe, ele morreu hoje e só ficou a cadela mas eu odeio-a com a mesma raiva e ódio que lhe tinha a ele e agora vou ao veterinário para que ele a mate, que eu não a quero nem mais um dia lá em casa. Nem mais um dia. Era dele e vai morrer com ele

O veterinário entregou-a a uma associação de cães abandonados

24.6.15

Hoje apetece-me rir




e deu-me para relembrar
aquele carro preto estrada fora, dois adultos na frente e três miúdos atrás. O habitual era apanharem uma sova de cinto, mas desta vez estava prometido que os iam abandonar. Ora, bem lá no fundo e apesar do medo, todos sabiam que abandonar filhos era história dos livros.
O carro parou, os adultos obrigaram os rapazitos a saírem e quando ela se preparava para também o fazer, fecharam-lhe as portas. Pensou que lhes iam bater, mas não, mal a porta dela se fechou logo as portas da frente se abriram.
Sabe que gritou, antes de chorar ao ver os irmãos cada vez mais pequenos, meias até ao joelho, calções e casaco e a neve que ainda não parara de cair desde manhã, a pintar-lhes os cabelos e os fatos, cada vez mais longe, já só as marcas do carro impressas na neve e o ódio a nascer por aqueles inimigos que na frente nem olharam para trás.

21.6.15

Sempre quis coisas impossíveis,

cantar, desenhar árvores, poder ir para o Alentejo sentar-me à beira de uma oliveira daquelas que também já não sabem a idade, desenhar-lhe  as rugas que o tempo agreste lhe provocaram no tronco, desenhar-lhe as entranhas que tantas vezes despudoradamente mostram.
Mais tarde quis escrever o que me ia dentro, não para mostrar, para escrever, mas desgraçadamente sou de uma timidez titubeante quase virginal no que ao meu eu diz respeito. Já ouço gargalhadas de quem me conhece, mas o que não sabem é que na verdade não me conhecem, veem a capa, o invólucro, a roupagem que me obrigaram ou que me impus usar, mas do interior nada, das razões nada, das lágrimas nada, dos porquês nada. Não, nunca conseguirei mais do que alinhavar umas quantas frases, porque de mim, nada.
Um dia, disse que pudor não entrava no meu vocabulário e não entra, nem a nível moral nem do corpo, nudez ou sexo.
Mas quanto ao meu eu, razões e porquês o pudor reina.

19.6.15

A minha mãe



 era uma filha da puta. E não é por estar morta que o deixo de pensar. Nunca percebi essa coisa de não dizer mal dos mortos e branquear tudo o que fizeram. O bem, esse é nos mortos preservado e passam a anjos barrocos.
Não no sentido de puta, mas de má, cruel e profundamente egocêntrica. Digo isto já sem nenhuma paixão, sentimento ou mágoa. Esses acabaram. Mas se por acaso contar alguma história desses tempos será sempre com a mesma angústia, o mesmo terror a mesma raiva e o mesmo ódio que na altura senti. É sempre assim, relembramos os sentimentos e são eles que nos levam ao que os causaram.
Para poder sobreviver naquela casa, tão novinha, tão insultada, arranjei uma couraça que, conforme os anos foram passando, se ia integrando na pele e fê-lo tão completamente que é por isso que todos esses sentimentos escorrem por mim, reconhecendo-os mas sem marcar.
Desprezava as mulheres fossem filhas ou conhecidas, ah! porque só tinha conhecidas, amigas não, ou por outra, era amiga de três primas que nunca lhe fizeram sombra: uma era corcunda, outra dedicava-se à família que estava doente e a terceira era viúva e nunca se interessou por mais ninguém.
Só lhe interessava os homens, menos o marido de quem nunca gostou nem quando namorou ou casou, amores platónicos e ficava ainda mais frustrada por só serem platónicos, não sei se por não ter coragem ou por serem imaginados
Deu cabo de sete filhos com o marido, nosso pai, a ajudar. Um doido outra cruel.
Viva a família disfuncional