31.8.15

A Europa não mudou quase nada

                                  Postal do St. Louis em Maio de 1939 - Museu do Holocausto


Todos estes migrantes, mortos e sobreviventes, toda esta dor e terror, toda esta vergonha de uma União Europeia que se recusa em recebê-los, lembra-me o navio St. Louis, o navio da vergonha, que zarpa de Hamburgo em 1939, cujo capitão alemão Gustav Schröder, leva a bordo uns dizem 937 outros 1.125 judeus, com destino a Cuba que recusa deixar aportar o navio. Seguem-se os Estados Unidos, vários países da América do Sul e Canadá. Ninguém os quer receber, migrantes daquela época.
O capitão que tivera a lucidez de não procurar os portos europeus, talvez sabendo o que Hitler se propunha fazer, volta para trás e consegue que VÁRIOS países da Europa os recebam, países esses que foram invadidos, com excepção de Inglaterra.
Eram apenas cerca de mil e tiveram de ser distribuídos.
Esta nova recusa não augura nada de bom.

28.8.15

Campo



                                                            @Jeffrey T Larson
Os dias escoam-se tão lentamente como quando eu esperava pelo amanhã que nunca mais chegava e olhava para a ampulheta para ter a certeza que o tempo realmente passava.
Não há vento, o ar está calmo, parado e o calor convida a gestos parcos, lentos, lânguidos. A voz arrasta-se e baixa-se em conformidade com o som que não se ouve. Ao longe um cão ladra e sei que ao fim da tarde, pássaros irão desassossegar o lugar.
Não há enoturismo, nem turismo rural ou de habitação, também não há, felizmente, restaurantes com estrelas michelin ou gourmets, não há listas com explicações que nunca mais acabam, nem há espumas e coisas do género, no entanto, tomara muitos chefes cozinharem tão bem como a Ti Rosa.
Aqui, tudo é puro e duro, tão puro e tão duro. O que parece é. As couves são couves, as batatas são apenas batatas, os tomates são divinos, apanhados só quando já estão maduros. O cabrito é apenas cabrito assado e o pato com laranja nada mais é do pato assado com laranja, ah, mas o pato é caseiro, como também o é o queijo fresco de cabra que como ao pequeno-almoço.
À noitinha, na rua com os vizinhos, a conversa não acaba.

24.8.15

O maravilhoso Peter Seeger


«"I you would like to get out of a pessimistic mood yourself, I got one sure remedy for you: go help those people down...»



21.8.15

O fundo do poço

                                                                 @foto de Bruno Silva



Abri a janela e vi, pela enésima vez, a pala da entrada e o filme arrebatadamente sedutor apareceu com todos os pormenores.
Ele a chegar a casa ir fechar a janela aberta e a ver-me estatelada na pala da entrada. Os gritos a correria escada a baixo, o desespero a pedir por uma escada e a voz insidiosa que controlara a esgueirar-se e a perguntar-me pela outra.
Aqui não há espaço para a outra. A porteira a telefonar aos bombeiros que chamaram a polícia, o médico legista que nunca mais chegava e ele sem conseguir ficar parado gritava, telefonava aos amigos e a voz a insistir que a outra era a causa e o efeito.
Aqui não há espaço para a outra. O corpo a ser levado para a morgue que passados três dias o libertava, o velório as flores e o enterro, o desespero e as lágrimas dele inconsolável, eu que voltava a ser o seu grande amor, o seu único amor e a voz a insistir que a outra o iria consolar
Aqui não há espaço para a outra. Inclinei-me mais na janela aberta, gemendo qual mantra infantil como quando se tira um brinquedo a uma criança, aqui não há lugar para a outra, aqui não há lugar para a outra e quanto mais o repetia mais o espaço dela alargava, o dele diminuía e o meu desaparecia.
Rebelei-me. Dor de corno? sofri com dor de corno? o meu espaço alargou triunfante, o dele diminuiu mais um pouco e o dela desapareceu. Endireitei-me e fechei a janela devagarinho dando tempo a que se esfumasse o enterro o velório e as flores, o corpo libertado a morgue e os amigos, o médico legista que nunca mais chagava a polícia e os bombeiros, a porteira, o meu corpo estatelado e ele.

10.8.15

Férias




É tempo de ver corpos estendidos no areal, chapéus-de-sol abertos, espreguiçando-se. Abranda-se o ritmo, a respiração é mais compassada, o sol começa a absorver o stress e a dourar a pele. É com esforço que se levantam para se refrescarem.
Ela também está estendida, é Setembro e não tem outros ao lado e se existem estão longe, sente também o sol, abranda o ritmo, estranha a quietude, a calma, O silêncio seria perfeito não fosse o marulhar da água e as buzinas ao longe. É com o mesmo esforço que se levanta para ir mergulhar.
A seguir à entrada na água, nada para um pouco mais longe para poder boiar, o que acha redentor, por ser um silêncio sem silêncio que a comove, faz as lágrimas chegarem-lhe aos olhos, sentir saudades desconhecidas e que a leva ao som idêntico, ou parecido do líquido primordial e se fizer um pouco de esforço, só um pouco, para se concentrar naquele silêncio sem silêncio, a paz instala-se com o mesmo à vontade com que o fazia antes dos gritos, das agressões e humilhações, antes da violência, da raiva e ódios, antes das mágoas sem retorno, das lágrimas e desespero, antes do amor.

3.8.15

Gente



                                                                    @Carrie Vielle

Estou sequiosa no deserto que ninguém vê, são enganados pelo sorriso postiço que a carcaça coloca. Estou no poço que ninguém vê, onde olhos distraídos confundem a água negra com uma lagoa límpida. Ando aos tombos, farpas enterradas, escorro sangue e pinto o caminho que ninguém vê, onde há passos que o misturam com a poeira que se agarra aos sapatos. Estou caída exangue no campo de batalha sem fim que ninguém vê, mísseis caiem e desfazem-me em sangue, onde há passos que o misturam com a poeira que se agarra às botas em corrida pelo caminho
Estou só